| Resenha | A hora da Estrela de Clarice Lispector

Quando eu começo ler Clarice alguma coisa em mim se movimenta, é estranho, não sei explicar direito, acho que também essas coisas que a gente sente dentro, não são passíveis de explicação, nem tudo precisa ser dito, algumas coisas se bastam no sentir.

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Quando li A hora da Estrela pela primeira vez me faltou maturidade, certamente não entendi a escrita da Clarice. Ainda cursava o Ensino Médio, as minhas preocupações eram outras e não dei a devida importância que a obra merecia. A releitura trouxe uma outra experiência, muito diferente da primeira, mais madura, com uma bagagem cheia de vivências, e talvez no momento mais certeiro da vida.

É incrível que um livro tão curto, de apenas 87 páginas, possa trazer tamanha profundidade, possa fazer o leitor mergulhar na leitura e no interior desses personagens de tal forma que se pegue em vários momentos olhando para o nada e pensando nessa história. É um livro que permanece, pelo menos, assim tem sido pra mim.

O enredo do livro, como a própria Clarice define, é sobre uma “inocência pisada”, Macabéa, personagem principal, é uma migrante nordestina que vem morar no Rio de Janeiro para trabalha como datilógrafa, mais uma figura invisível da sociedade. A vida de Macabéa é totalmente miserável, mas o ápice da sua pobreza é interna, ela é fraca de vida.

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A vida dessa personagem se constrói frente aos olhos do leitor. Acompanhamos a difícil missão do narrador Rodrigo S.M de escrever essa história. Clarice projeta-se em um narrador masculino que mantém o enredo em suspenso até a última página, a metalinguagem é um instrumento utilizado nesse processo, ao mesmo tempo que a Macabéa e os acontecimentos são descritos, questionamentos sobre a própria construção aparecem. Acho que um dos recursos mais sensacionais desse livro, o que senti, com certeza algo proposital pela autora, é que o livro estava sendo escrito enquanto eu o lia, o tempo todo em suspensão, o leitor fica na expectativa de que os acontecimentos pudessem mudar o curso da história.

Macabéa e o narrado Rodrigo S.M são, ambos, muito importantes para o enredo, Rodrigo comunica ao leitor a necessidade de exteriorizar Macabéa, ela é uma personagem totalmente fictícia, mas que existe, sim, ela existe porque Rodrigo a cria. Ele, um intelectual classe média, um dia passeando pelas ruas do Rio de Janeiro, se depara com uma nordestina e é tomado por um magnetismo pela figura dessa mulher, a partir disso ele fica remoendo, durante anos, a história de vida que essa pessoa teria, e vê a urgência em externalizar.

“ É. Parece que estou mudando de modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela.” (pg 17)

Quanto a Macabéa, ela é incompetente na vida, não tem consciência de si mesma, ela só vive e vai vivendo, como se fosse uma consequência. Ela é tão triste por fora, mas por dentro ela se considerava feliz, pensava que a pessoa era obrigada a ser feliz, então era. Perdeu os pais muito cedo e logo foi morar com uma tia beata, sua única parente e que logo morre também. Tinha uma única paixão na vida: goiabada com queijo. No Rio de Janeiro morava em uma vaga de quarto com mais quatro moças. Só se alimentava de cachorro-quente. O luxo que se dava era tomar um gole de frio café antes de dormir. Macabéa é tão pobre de tudo, ela não tem, nem mesmo, a capacidade de ver dentro de si mesma sua infelicidade. Ela é conformada.

“Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para que mais que isso? O seu viver é ralo. Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça. Moça essa – e vejo que já estou quase na história- moça essa que dormia de combinação de brim com manchas bastante suspeitas de sangue pálido. Para adormecer nas frígidas noites de inverno enroscava-se em si mesma, recebendo-se e dando-se o próprio parco calor. Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido, dormia exausta, dormia até o nunca.” (pg 23-24)

O narrador vai à procura de algo significante na vida dessa personagem, e no decorrer do enredo percebemos que ao buscar isso ele encontra mais, habita uma Macabéa em todo interior do ser humano.

A personagem vai crescendo no decorrer da narrativa e o próprio Rodrigo S.M vai descobrindo novas nuances dessa vida apagada, até que o fim, e aqui é necessário dizer, o “gran finale” do livro vai se delineando e Macabéa vai vivenciar, então, o seu momento amargo de estrelato. O desfecho que Clarice escolhe para esse livro é de um primor, de uma ironia tremenda, é magnifico.

A escrita da Clarice emociona. Acho que talvez a razão pela qual ela tenha se tornado tão popular (e até gerado um certo pré-conceito), ela tem um domínio da palavra, consegue capturar momentaneamente a essência do escrito. Como uma pintura abstrata, você precisa atribuir certo significado. Ela não quer agradar, a literatura da Clarice te tira do eixo, essa é sua intenção, ela quer que doa em você, é através da dor que vem a mudança.

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A hora da Estrela é uma dor, acho que a melhor forma de descrever esse livro pra mim, desde a primeira até a última página: uma dor. Mas essa dor te atinge somente se você tiver empatia pela personagem, se você sentir Macabéa, sentir a profundidade com que a escrita da Clarice te toca. “A vida é um soco no estomago”, esse livro é um soco do estomago.

Enfim, vou ficando por aqui, espero que vocês tenham gostado da resenha. Me conta aqui se você já leu, ou se ficou com vontade de ler esse livro?!

Até a próxima.

Isabel V.S

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A Hora da Estrela / Clarice Lispector, Rio de Janeiro; Rocco, 1998. 1ª Edição.

 

 

2 comentários em “| Resenha | A hora da Estrela de Clarice Lispector

  1. Esse foi o único livro da Clarice que li, também no EM, e me senti dessa exata maneira. Acho que reler ele, hoje mais madura, seja uma ótima ideia. Clarice tem uma escrita e uma forma de falar melancólica que me toca muito. Existe uma entrevista dela pouco antes de vir a falecer, onde ela parece um pouco com a própria escrita.

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    1. Acho o máximo as entrevistas dela, ela não estava muito preocupada em se explicar, ou explicar sua escrita, ambas as coisas simplesmente eram. A escrita dela passa essa angústia da existência, acho que o que mais me chama pra ela é isso. Mas realmente, a releitura na vida adulta trouxe outro significado. 😊😍

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